Somos quadros pintados para enfeitar o sistema
(Arte: Marcelha Pereira) |
Às vezes me sinto como um objeto de decoração para o
sistema. Uma peça para algo enorme e sem lógica que não sabemos de onde veio e
nem para onde vai. Nascemos para agradá-lo, morreremos fazendo o
mesmo. Não há escapatória. Se existisse algum meio de fugir dessa enorme
bolha que nos encoberta, eu lutaria para achá-lo. Estou lutando. A única saída
aceitável seria o suicídio, mas sou fraca demais para me matar. Então se não tenho coragem para largar esse mundo, tenho que
adquirir coragem para enfrentá-lo.
A cada vez que abro meus olhos me sinto em uma sala de
tortura escura. Eu não consigo ver a saída, o que me deixa apavorada. E eu não
tenho respostas, o que me deixa atordoada. Cada sessão de tortura dura
cinco horas por dia. O resto do tempo é usado para me dar esperanças de que
tudo terminou e eu finalmente serei livre - puro engano. Antes das
últimas horas reservadas para dormir, o sistema me tortura mais um pouco para lembrar que está observando cada passo que dou. Depois ele finalmente
me dá um sonífero. São nessas horas que posso sonhar um pouco. Nessas horas me
sinto liberta. Essas horas parecem minutos.
O sistema de vez em quando injeta uma dose de felicidade em
mim. Duram horas. Certas vezes ele fica com pena e coloca doses mais
fortes capazes de me fazer sentir feliz por dias. Dias milagrosamente suficientes
para renascer a chama da esperança dentro de mim. Chama tão forte capaz de me
incendiar por inteiro. Chamas que são trazidas por amigos e familiares. Uns
trazem o sol, outros me trazem água, aqueles muito gentis me trazem jasmins e
vão pincelando um mundo melhor para mim.
Mesmo quando não está sendo de todo modo ruim, o
sistema faz questão em lembrar de que estou servindo a ele. Em troca de
felicidade eu devo oferecê-lo a imagem de garota obediente. Eu acredito que ele
só me fornece felicidade para que eu tenha mais facilidade para cumprir os meus
deveres e não infectar a mente dos meus companheiros com ideias que não
correspondem ao que ele quer. O sistema manda, e se eu arrumo uma chance para
não obedecer, ele me faz obedecê-lo. Não tenho oportunidade de escolha. Ele exerce poder sobre mim, mesmo eu não
querendo.
Creio que seja mais cruel com um do que com outros, mas
todos nós sofremos. Logo quando nascemos somos ensinados e orientados a seguir
por um caminho que atinge o propósito de dar lucro ao sistema. E aos que,
infelizmente, não conseguem atingir o ansiado final, é destinado a eles o setor
dos descartáveis. Todos nós somos descartáveis a partir do momento que não
fazemos o que nos é submetido. Nunca cheguei a ver o rosto de quem comanda toda
essa fábrica, mas espero ansiosamente poder ver e falar tudo o que ele fez para
mim, mostrar cada cicatriz que me deixou. E avisar que não deixarei herdeiros
para serem usados como quadros que enfeitam a sua sala.
(Arte: Marcelha Pereira) |
Me arrepiei todo com a última frase, reflexo da maturidade do texto. Parabéns.
ResponderExcluirAyrton
Fico muito feliz que tenha gostado, é o meu texto preferido. Obrigada.
ExcluirCelha
Amei *-*. O texto fez com que eu refletisse, adoro textos que fazem isso comigo. Continue escrevendo textos maravilhosos como esse. Bjs.
ResponderExcluirFico muito feliz em ter te feito refletir Gill! Faz com que eu sinta ainda mais orgulho em escrever. Grande beijo!
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